Alfabetização de internos possibilita ingresso no mundo das letras e acesso à dignidade

15 de março de 2022 - 14:02

Bruno Mota - Texto
Rosane Gurgel - Fotos

A base para o aprendizado de praticamente todo o conhecimento acadêmico é a alfabetização. Sem ela, até as habilidades mais elementares do ciclo escolar ficam inviabilizadas. Por consequência, tornam-se praticamente nulas as chances de conquistar boas oportunidades no mercado de trabalho, cada vez mais exigente. Para além disso, a falta de letramento constitui importante fator de exclusão social, sendo comparada à cegueira em um mundo que se comunica pela escrita.

Não à toa, a população carcerária cearense é composta, em parte significativa, de pessoas analfabetas. Levando em conta que a falta de perspectiva decorrida desta situação, por vezes, funciona como indutora à prática de atos ilícitos, a gestão estadual assumiu o compromisso de investir em meios efetivos para reverter tal realidade.

Desta forma, a Secretaria da Educação (Seduc), com o apoio da Secretaria da Administração Penitenciária (SAP), vem mobilizando esforços para promover a alfabetização dentro dos presídios e desfazer um ciclo vicioso secular.

 

Neste sentido, o Plano Estadual de Educação para Pessoas Privadas de Liberdade e Egressas do Sistema Penitenciário, lançado em agosto de 2021 pelas duas setoriais, tem como um dos principais objetivos a erradicação do analfabetismo entre os apenados. A política, contudo, já acontece há mais tempo. Tanto que, somente nos últimos três anos, houve o registro de 2.276 internos participando da etapa da alfabetização.

Uerilania Cabral de Souza, de 24 anos, chegou ao Instituto Penal Feminino Auri Moura Costa (IPF) sem saber anotar o próprio nome. Após cerca de um mês tendo aulas na unidade, ela já se acha em condição de redigir e soletrar uma série de palavras. Agora, a alfabetização completa está a poucos passos de se tornar realidade. “Todo dia é uma nova descoberta. De uma letra, de uma palavra. A cada dia, tenho vontade de saber mais. Vejo que é muito importante essa oportunidade que estou tendo, não apenas pra redução de pena, mas para o meu crescimento, pois preciso muito. Quando sair daqui, vou continuar meus estudos e seguir em frente”, idealiza.

Interação social

“Pegar um livro e ler, em vez de só olhar as figuras. Saber o que diz a placa na rua e o letreiro no ônibus”. Estas são algumas das atividades que só eram possíveis para Uerilania com o intermédio de outra pessoa. A aluna descreve a dificuldade que tinha para realizar ações corriqueiras da vida em sociedade. “Até aqui dentro mesmo, quando a gente quer ler algo no nosso processo, tem que ficar pedindo pras nossas parceiras. Isso me causa vergonha, por já ter uma certa idade e não saber ler”, desabafa.

Uerilania tem dois filhos: um de sete anos e outra de três. De acordo com ela, o mais velho é alfabetizado, enquanto a mais nova está descobrindo o mundo das letras. “A minha maior felicidade vai ser poder escrever uma carta pros meus filhos. E, quando chegar o Dia das Mães, fazer uma carta para a minha mãe”, projeta. A habilidade na escrita é também exercitada com o objetivo de, um dia, realizar a aspiração profissional: tornar-se cantora do gênero gospel. Para compor boas canções, a jovem entende ser necessário adquirir, primeiro, o letramento.

No movimento de reconstrução pessoal, o incentivo e a demonstração de confiança de outras pessoas também têm tido peso significativo. “Quando minha tia veio me visitar, eu disse que estava no colégio e ela chorou de alegria. Tenho que abraçar cada oportunidade, pois quem sabe essa é a minha chance de crescer na vida, de ser outra pessoa e poder dar orgulho à minha família”, frisa Uerilania.

Vocação

Joana Darc Ferreira da Costa é professora de Alfabetização da Escola de Ensino Fundamental e Médio (EEFM) Aloísio Lorscheider e há dois anos atua dentro do sistema prisional. Hoje, leciona no Instituto Penal Feminino, onde diz perceber a atenção e o interesse nas aulas por parte das internas. “Tenho alunas que nunca antes estiveram em sala de aula e que aqui tiveram o acesso, demonstrando muita sede em aprender. Jamais elas pensariam que dentro da unidade iriam ter essa oportunidade. Imagina, estar em privação de liberdade e poder aproveitar o que não aproveitou lá fora!”, observa.

“Nosso trabalho se reflete na sociedade, de forma geral. Em vez de termos reincidentes no crime, nasce a possibilidade de uma reinserção na sociedade pela aprendizagem. A família passa a se encher de esperança de que elas irão tentar ser pessoas melhores. Não conseguimos mudar o mundo, mas mudamos a vida de alguém. Aos poucos, vemos o resultado”, pondera Joana.

A professora se considera realizada na função e relata ter ficado mais sensível e empática desde que assumiu o cargo. “A gente não escolhe trabalhar em presídio. De repente, somos escolhidas. Encontrei dentro das unidades prisionais uma valorização profissional muito grande e acabei me encantando com essa área. Resolvi trabalhar com o público de alfabetização, pois considero dignificante um aluno aprender a ler e a escrever, poder assinar o seu alvará”, ressalta.

Tempo produtivo

Maria Creuza Bento, de 50 anos, também está em processo de alfabetização enquanto cumpre pena no IPF. Ela reconhece que ao longo da vida, na condição de dona de casa, não tinha conseguido se dedicar aos estudos, devido à grande quantidade de afazeres domésticos. Apesar da vontade de voltar à liberdade, Creuza se diz bastante feliz por estar aproveitando o tempo em privação de forma produtiva.

“Pedi a oportunidade e tive. Estou amando estudar. Não é nem pela remição, mas porque quero muito aprender a ler. Eu não sabia nem diferenciar um B de um D. Quando ia a uma loja e precisava fazer cadastro, tinha que colocar o dedo porque não sabia assinar o nome. Me sentia inútil e cega”, lembra.

Agora, com a alfabetização em andamento, ela já consegue perceber a mudança na própria realidade. “Fiquei muito emocionada quando meu neto chegou, na visita, e eu consegui dizer a ele como se escreve a palavra ‘casa’. Aprendi a escrever os nomes das minhas filhas, e isso é muito importante pra mim”, comemora.

Outro motivo de grande honra, na visão de Creuza, é ser chamada pela professora, na frente da sala, para ler o que está escrito no quadro. “Tem gente que fica abismada em ver o tanto que eu já sei. Quando estiver lá fora, nem que seja à noite, vou continuar meus estudos”, enfatiza.

Evolução

Leonardo da Silva Amorim, de 29 anos, é casado e pai de uma menina de 11. Até pouco tempo atrás, ele diz, ler ou escrever era algo impensável. Interno na Casa de Privação Provisória de Liberdade Professor Jucá Neto (CPPL 3), Leonardo enfim conseguiu iniciar o processo de escolarização e reconhece a importância da decisão que tomou.

“Com o estudo, a gente consegue se regenerar e ter uma vida digna. Sempre quis isso e, graças a Deus, aprendi a fazer meu nome. Agora, vou conseguir tirar meus documentos e ter um trabalho. A escola também está me tornando uma pessoa educada. Quero poder chegar perto do povo e ser olhado de forma positiva, como alguém de coração bom. Quero poder ajudar minha filha a também aprender a ler e a escrever. Mostrar à minha família que mudei de vida”, explica. Além de estudar, Leonardo também faz curso profissionalizante de pintura na unidade prisional.

Perseverança

Lupita Kethelyn, de 27 anos, é travesti e encontra-se em privação de liberdade na Unidade Prisional Irmã Imelda Lima Pontes, que se destina ao público GBT. O estabelecimento também recebe idosos e pessoas com deficiência, entre outros perfis. Em 2018, por incentivo de colegas da penitenciária, Lupita começou a estudar.

“Aqui tirei a identidade com o meu nome de batismo. Lá fora, tinha sido no dedo”, relata. O começo da aprendizagem dentro da prisão, ela diz, não foi fácil. Ainda assim, persistiu na ideia e deu sequência aos estudos.

“No começo, eu me estressava porque não sabia de nada. Mas, hoje em dia, me dedico muito. Quero estudar lá fora, pra aprender mais, e até ensinar outras pessoas”, planeja. Lupita estuda no período noturno. Durante o dia, ajuda a cuidar de internos que têm deficiência. “Aqui, cuido de seis pessoas que tiveram AVC, um cadeirante e dois idosos. Depois, são duas horas e meia diárias de estudo, o que me ajuda muito”, admite.

Com o tempo, Lupita explica, as práticas da leitura e da escrita tornaram-se habituais e, por assim dizer, indispensáveis. Na escola, a aluna aprendeu a fazer cartas para a família e virou participante assídua do Projeto Livro Aberto.

“Passo um mês lendo o livro, faço a resenha e consigo quatro dias de remição. Aqui tem uma biblioteca e eu não fico sem ler. Quando acabo um livro, pego outro. Consigo ler dois livros ao mesmo tempo, um pra fazer a prova e o outro pra me distrair no dia a dia”, explica.