Educação prisional: estudos auxiliam na produção de sentido para a vida

17 de março de 2022 - 15:37

Bruno Mota - Texto
Rosane Gurgel - Fotos

Para que a educação cumpra o seu papel social, é necessário mais do que promover a assimilação de conteúdos por parte dos alunos. Educar pressupõe formar o indivíduo integralmente. Nesta concepção, adquirir habilidades socioemocionais e aprender princípios de cidadania é tão importante quanto desenvolver potencialidades cognitivas. Este preceito é adotado pela Secretaria da Educação (Seduc) em relação a todas as modalidades de ensino ofertadas na rede pública estadual. Naturalmente, a educação prisional está incluída neste universo.

Izabel da Silva Gouveia é professora dos níveis fundamental (anos finais) e médio da Escola Aloísio Leo Arlindo Lorscheider, unidade de ensino que atende exclusivamente ao público de internos do sistema prisional. A educadora, que atualmente leciona dentro da Casa de Privação Provisória de Liberdade Professor Jucá Neto (CPPL 3), em Itaitinga, alega que o ponto de vista do senso comum a respeito da educação em prisões não condiz com o que vivencia na prática profissional.

Surpresa

“Quando comecei, percebi que a realidade de uma sala de aula dentro de um presídio é completamente diferente do que se imagina. Parece que vamos chegar e encontrar pessoas violentas, com um vocabulário diferente. Mas, quando convivemos com o interno e o enxergamos como aluno, essa visão muda completamente. Nunca imaginei que eu pudesse ser tão bem tratada e respeitada por um aluno, como sou dentro de um presídio. Eles me veem como se fosse algo de bom na vida deles, como se o professor fosse alguém capaz de mudar suas vidas”, enfatiza.

 

Izabel diz procurar meios para tornar as aulas mais dinâmicas. “Dentro de um presídio, a educação é um objeto de mudança, e a gente faz esse papel todos os dias. Eles terão que traçar uma jornada longa quando saírem daqui, mas a mudança tem que começar agora, de dentro pra fora, na construção de valores diferentes. Fazemos também um trabalho social. Muitas vezes, os valores morais e culturais são mais importantes do que o conteúdo propriamente dito. Não temos como trabalhar com um aluno que está psicologicamente abalado e que não tenha alguém que lhe diga que é capaz”, ressalta.

A professora demonstra ter confiança no resultado do trabalho que desempenha. “Por menor que seja, acredito que faço a diferença nas vidas dessas pessoas. Eles sempre deixam muito claro pra gente, o quão importantes somos no processo de ressocialização. Já encontrei ex-alunos em liberdade, e a fala de reconhecimento deles em relação ao ensino é muito grande”, aponta.

Competências

Aurélio Lino Maia é egresso do sistema prisional e hoje trabalha na Secretaria da Fazenda do Ceará (Sefaz), onde exerce o ofício de marceneiro. Ele teve a oportunidade de se preparar para o Exame Nacional do Ensino Médio para Pessoas Privadas de Liberdade (Enem PPL) enquanto esteve interno na Unidade Prisional Professor José Sobreira de Amorim, em Itaitinga.

No currículo, além da marcenaria, também se somam cursos de informática, costura e eletricidade predial e residencial, todos realizados no presídio. Atualmente, Aurélio está matriculado no curso de Licenciatura em Física, do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE).

“O conhecimento é uma moeda de ouro, que vale em qualquer lugar. Os saberes se completam para que as pessoas possam trabalhar em equipe e viver em sociedade, com harmonia. É sempre bom a gente conhecer coisas novas, atuar em outras áreas, estar aberto a novos desafios. Hoje, temos várias dificuldades no mercado de trabalho. Então, tendo mais competências, fica mais fácil de conseguir oportunidades”, explica.

Leitura

A chance de estudar no período de reclusão representou, para Aurélio, a descoberta de uma série de aptidões. “Eu tinha perdido o hábito da leitura e dentro da unidade esse hábito retornou. Fiz várias provas do Projeto Livro Aberto. Em mais de 200 livros que eu li lá dentro, deu pra adquirir alguns conhecimentos novos. Hoje eu tenho livros em casa, faço indicações, troco com os amigos. Um dos que mais marcou foi “O Mundo de Sofia”, que conta a história da filosofia”, exemplifica.

Aurélio confirma o depoimento da professora Izabel, quando diz que mantém contato com os educadores que o acompanharam na época de privação de liberdade. “O sistema prisional tem grandes potenciais a serem desenvolvidos. A educação é uma grande ferramenta na transformação de vida”, pontua.

Sociabilidade

Esta compreensão é compartilhada por Flawbert Nunes Correia, de 27 anos, atualmente interno na CPPL 3. Antes de chegar à prisão, ele admite que não tinha interesse pelos estudos. Contudo, há dois anos, resolveu voltar à escola na condição de custodiado e, desde então, vem redescobrindo o valor da aprendizagem.

“Hoje, dentro do cárcere privado, estou dando continuidade ao objetivo que eu tinha e abandonei, que era de ser veterinário. O estudo vai me ajudar muito a correr em busca desse sonho. Ao sair, vou procurar uma escola para terminar os estudos o mais rápido possível e então poder entrar na faculdade”, planeja.

A habilidade para dialogar e interagir socialmente é algo que Flawbert destaca como fruto da volta à escola. “Já aprendi a conversar com as pessoas, com os funcionários e as pessoas que moram na cela, coisa que antes não sabia. Quando a gente entra no crime, não sabe disso”, pontua.

A matéria de que Flawbert mais gosta é artes. Mas, ele considera que todo conhecimento adquirido tem valor. “Me identifico muito com o desenho. Melhorei a minha caligrafia e agora já sei colocar as vírgulas. Não sabia acentuar, escrevia as palavras muito juntas. Também aprendi a dividir, somar, multiplicar e subtrair”, exemplifica.

Ocupação benéfica

Antônio Arismar de Andrade cursava a 5ª série do Ensino Fundamental quando abandonou os estudos. Hoje, aos 60 anos, e na condição de cadeirante, resolveu retomar a caminhada estudantil enquanto cumpre pena na Unidade Prisional Irmã Imelda, que se destina a idosos, pessoas com deficiência e ao público GBT, entre outros perfis.

“Aqui, a gente aprende e espairece a mente. Fazia muitos anos que eu tinha saído da escola e agora estou relembrando, começando tudo de novo. A vida de cadeirante é difícil, mas os estudos ajudam a gente”, conta Arismar, que é eletricista profissional e técnico em manutenção de piscinas.

Nohemy Ibanez, coordenadora de Diversidade e Inclusão Educacional da Seduc – área que abrange a Educação Prisional – defende que a dignidade é intrínseca ao ser humano, e que todos nascem com direitos iguais. “Precisamos ter um olhar sobre os internos não como coitados ou estigmatizados, mas reconhecer neles o direito à dignidade e à educação, quando o próprio processo de vida lhes subtraiu a possibilidade de ter permanecido na escola e ser inserido na vida social”, enfatiza.

Nohemy observa, ainda, que a missão da educação é contribuir para a construção de um propósito na vida das pessoas, considerando as suas trajetórias e necessidades. “Trabalhamos para que a escola, o currículo, os processos avaliativos e os materiais didáticos sejam capazes de dialogar com as identidades destes sujeitos”, avalia.