Educação prisional: escolarização reduz estigmas e incentiva novas trajetórias

18 de março de 2022 - 14:34

Bruno Mota - Texto
Rosane Gurgel - Fotos

Existe um clamor social para que o tempo dos indivíduos privados de liberdade seja ocupado de maneira produtiva. É sabido, além disso, que a reinserção destas pessoas na sociedade não se realiza por si só, sendo necessária a ação do poder público no sentido de oferecer-lhes oportunidades para a construção de uma nova vida. Sendo assim, o Governo do Ceará tem apostado na escolarização de internos do sistema carcerário, considerando que a educação é a base para o desenvolvimento social.

Atualmente, a rede pública estadual de ensino, gerida pela Secretaria da Educação (Seduc), possui quatro escolas com oferta de matrícula para a população privada de liberdade no Ceará, atendendo à demanda de 14 unidades prisionais. De acordo com levantamento feito em dezembro de 2021, havia 2.895 internos com matrícula ativa.

Entre estas escolas, existe a que recebeu a denominação de Aloísio Leo Arlindo Lorscheider. O patrono da instituição, cardeal e ex-arcebispo de Fortaleza, não ao acaso, era atuante defensor dos direitos humanos. Neste estabelecimento de ensino, o atendimento é exclusivo para apenados.

Qualificação

Como fruto deste trabalho, desenvolvido em parceria com a Secretaria da Administração Penitenciária (SAP), em janeiro passado o Ceará aprovou 1.253 alunos na edição mais recente do Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos para Pessoas Privadas de Liberdade (Encceja PPL). Ao todo, foram 1.125 qualificações no Ensino Fundamental e 128 no Ensino Médio. Além disso, foram emitidos 2.488 atestados por proficiência em pelo menos uma área de conhecimento, o que representa uma certificação parcial no exame, que pode ser complementada futuramente.

O Encceja é uma alternativa para quem não teve chance de concluir os estudos na faixa etária adequada e proporciona a obtenção do diploma da educação básica. O exame é aplicado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).

O interesse em obter a certificação, assim como a participação efetiva nas aulas dentro das unidades prisionais, são indicativos de que o trabalho conduzido pela Seduc vem surtindo efeito, e que a transformação individual é perfeitamente factível.

 

Direito universal

A secretária da Educação, Eliana Estrela, classifica como bastante oportuna a parceria desenvolvida entre Seduc e SAP, para levar escolarização a pessoas em privação de liberdade. “Educação é direito de todos. Se queremos, de fato, transformar a sociedade em um lugar melhor de se viver, ninguém pode ser excluído deste processo. É muito clara a relação entre a educação e a conquista da cidadania”, ressalta.

Eliana defende que a aquisição de conhecimento proporcionada pelo estudo, assim como a interação pessoal que ocorre no momento das aulas, são fatores essenciais à formação de todo indivíduo. “A oferta educacional direcionada aos internos do sistema prisional visa ao desenvolvimento humano e à conquista de novas oportunidades. Reconhecemos o empenho de todos os professores da nossa rede que atuam junto à população carcerária, que não desistem de trabalhar por este ideal e acreditam firmemente no poder da educação”, enfatiza.

O secretário da Administração Penitenciária, Mauro Albuquerque, ressalta que as iniciativas desenvolvidas no campo da educação têm sido basilares no processo de ressocialização dos internos.

“Com isso, colocamos nas ruas pessoas com mais condições de não retornar ao sistema prisional. A Seduc tem sido parceira desde quando eu assumi a gestão da SAP, e isso é fundamental para o nosso desempenho em todas as ações. Depois da educação, vem a capacitação e o trabalho. Mas, nada acontece se não houver educação”, argumenta.

Mauro Albuquerque garante estar trabalhando pelo aumento do número de vagas para a escolarização nos presídios. “Nossa meta é dobrar a quantidade de presos em sala de aula. Quando damos educação ao interno, abrimos a visão dele. Demonstramos que o mundo não se resume àquilo que ele conhece”, pontua o secretário.

Particularidades

Nonato Lima, assessor técnico da Educação para Pessoas Privadas de Liberdade da Seduc, atenta que a escola na prisão tem uma identidade própria, por atuar num contexto muito peculiar. “Temos um tempo pedagógico diferenciado em relação às escolas extramuros. Aqui, alunos entram e saem de forma sistemática. As turmas não são lineares. Com isso, surge o desafio de tornar o currículo ainda mais vivo. Não podemos simplesmente apresentar conteúdos conceituais, mas mostrar algo que faça sentido para eles”, explica.

Nonato também aponta para a necessidade de auxiliar o indivíduo a ressignificar a própria identidade. “Nas unidades prisionais, recebemos o aluno com o estigma de ser alguém que traz um crime, uma sentença a cumprir. A grande perspectiva da escola é descolar a história anterior desse sujeito e olhá-lo como um estudante. Esse estudante precisa se reconhecer como alguém que está reconstruindo o projeto de vida. Os conteúdos da sala de aula precisam influenciá-lo a tomar atitudes”, esclarece.

Com o decorrer do tempo, observa Nonato, o passado de negação transforma-se num futuro de possibilidades. “A gente sabe que o período de privação de liberdade é tenso. Mas, queremos que a semente colocada possa continuar o seu processo de crescimento, quando estiver do lado de fora. Temos vários exemplos de pessoas que saíram da prisão e continuaram seus estudos, conseguindo qualificação profissional para muito além do subemprego”, destaca Nonato.

Evolução

O coordenador educacional da SAP, Rodrigo Moraes, explica que o sistema penitenciário cearense passou por uma reestruturação nos últimos anos. A partir disso, foram favorecidos tanto o aspecto disciplinar, como o ambiental. O destaque vai para as salas de aula, que passaram por reforma estrutural para contribuir com o processo de ensino e aprendizagem.

“O próprio interno vê a educação com um olhar voltado para a reintegração. Ele entende a importância de ser alfabetizado e de concluir os seus estudos. E o policial penal entende a importância da educação nas unidades prisionais, o que colabora bastante para o processo”, avalia.

Rodrigo lembra de casos de internos que trabalham pela manhã e à tarde, reservando o período da noite para os estudos. “Eles estão no cárcere, mas têm todo o seu tempo sendo ocupado com atividades que acreditamos ser transformadoras”, esclarece.